sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

Azul

Andava para um lado e outro, respondendo ao eco de seu assobio para enganar a solidão. Pupilas dilatas, quarto escuro. Paredes hermeticamente fechadas. Sentou-se e por um segundo adormeceu. Talvez pudesse se lembrar da tarde anterior.
Era mais uma daquelas difíceis segundas, mas estranhamente o dia chegava com gosto de flor e cheiro de açucar. Era setembro, as árvores saudavam a primavera. Mas segundas, Carlos não via. Às segundas, não tinha avó e nem família , tinha o gosto amargurado de quem se levanta sem acordar e sai manobrando por entre os móveis para se despertar quando o tornozelo sentisse o choque do encontro matinal com a cômoda. Estupendo gemido. Bom, um novo dia. Tudo corria depressa, o tempo, a gentileza, e seu organismo. Como se fosse regido por uma força estacionária. Estresse garantido. Trânsito caótico, grande metrópole. De repente se lembra de dois carros pretos e homens altos, coloca a mão na cabeça, droga! Doía!
O que teria acontecido? Por que não lembrava? O que diabos estaria fazendo naquele quarto úmido? Tentou mais uma vez. Fechou os olhos. Agora se lembrava de um dia claro, de uma casa velha e um grande jardim. Eis que surge um menino com pés no chão e cabeça no céu. Era ele, um domingo! Nos domingos costumava ser da vó, gostava de correr a céu aberto, colecionava larvas, soltava borboletas, se lambuzava todo de sobremesa. Não, não este domingo, não era hora de se lembrar da avó, se concentre no que foi ontem, brigava consigo. De novo fechou os olhos. Agora via uma grande sala, tinha uma bela luminária e um piano ao centro, desta vez ele brincava de pique-esconde com seu gato enquanto sua mãe gesticulava nãos. Sentou-se a beira do piano, imaginou-se Bach e foi. Às vezes gostava de fingir, de fazer cena. Era músico, mago, delinquente e sorria. Sorriu brevemente, e logo voltou a si. Memória inútil, porque não se lembra de ontem? Por que todos esses dias azuis me vêm à cabeça neste exato momento? Continuava a se cobrar.
Tentou dormir, não podia. Agora andava de um lado ao outro, um lado para o outro. Ficou pensando nos momentos que teria vivido e na vida perdida. Esforçou para se lembrar do último sorriso que houvera dado. Puxa, quanto tempo isso fazia! Parou por um instante! Talvez não se lembrasse de ontem, simplesmente porque ontem não teria sido vivido, ontem deveria ter se arrastado, como os últimos anos. Ontem não teria se fixado na sua cabeça, porque nada fazia sentido, porque não conhecia bem sequer sua rua. E talvez ele fosse na verdade um aglomerado de eus que eram tudo o que ele não teria sido durante todo esse tempo. Então, ele devia ter andando por todas as ruas na contra mão para atravessar o passeio, e sentir o vento dos carros que passavam do seu lado. Respirava fundo como se o ar fosse puro. E chegou a acreditar que fosse.
A porta do quarto se abriu, um homem o arrastou para fora.
- Homem errado, você tem sorte. Vá embora e esqueça o que se passou - disse o homem.
Carlos estava ali, no chão, perplexo. Não com o que houvera acontecido, mas a situação que se passou para que ele pudesse se lembrar de tudo aquilo que o tempo não permite que volte. Não quis contar pra ninguém. Largou o emprego e voltou a morar com os pais, sempre ia até a avó. Nada voltou a ser como antes. Mas fez domingos, segundas e semanas com gosto de azul e cheiro de novo.

9 comentários:

  1. [não o mundo que se torna complexo, mas o olhar que perscruta ou o obscurece]

    um imenso abraço

    Leonardo B.

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  2. Você supera a cada palavra ! (L)
    Chorei com esse.
    Lindo!

    Espero nunca acordar sabendo que dormi mais vida do que devia.

    Te amo !

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  3. muito intensa as tuas letras... que lindo...

    fiquei impressionada, viu ?

    talentosíssima.

    beijão

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  4. Só poderia ter sido escrito por alguém que sabe ver o azul.
    E que além de ver sabe enxergar.

    É tudo tão lindo por aqui...

    (L)

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  5. Do caralhooo!!!

    Vocês está escrevendo divinamente bem!
    Parabéns de verdade!
    Um grande beijooo!!!

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  6. Girando, girando e agradecendo a tua entrega linda... Canto bom de ficar esse aqui. volto!

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  7. Vim retribuir a visitinha carinhosa e dou de cara com um monte de cheiros e gostos... Eu volto logo pra me deliciar com as suas letras, viu?

    beijoca

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