Multifocal, porque são múltiplos espaços. E alguém que acredita na construção poética de significados.
quinta-feira, 25 de novembro de 2010
sábado, 6 de novembro de 2010
E se o amor quiser provas
Manhã de domingo, ela olhou preguiçosamente para lado e não havia mais ninguém na cama. Apenas seu corpo pesado ocupava o espaço. Pensou em se levantar, mas os olhos remelavam tanto que preferiu adiar o momento até quando a dor chegasse a seu corpo e ela não pudesse mais conter. Duas horas depois, decidiu que: ou era dissolvida, ou se levantava. Sabendo que tudo é solúvel, percebeu que escorreria para algum lugar sombrio. Ficou com a segunda opção. Calçou seus chinelos se espreguiçando, lavou o rosto, abriu a porta e logo avistou seu companheiro. Ali estava ele, com toda sua plenitude... esperava-a com um café quente e torradas. O cheiro percorria todo o apartamento. Ela sorriu, como se o vapor fosse música. Talvez fosse, talvez o amor tivesse composto algo, instantaneamente quente, em seu coração.
Então, depois do café da manhã, o casal se beijou e foi a igreja. Chegaram às 11:00 e como de costume, ela fez o almoço enquanto ele assistiu aos seus programas desportivos. Era sempre a mesma coisa... Almoçavam, viam o jogo e logo depois algum filme, até que dormissem pelo sofá. Depois iam para a cama assustados com a velocidade com qual o dia foi embora, preparando seus corpos para o cansaço de mais uma semana de trabalho, acostumando suas mentes para o amor retraído, estressado, quase mal educado, que os esperava durante a semana.
As vezes, o domingo se tornava tão distante que eles se esqueciam de todos os bons pensamentos e se entregavam ao caos do dia-a-dia. Ele deixava de lado as cores que pintava os olhos dela quando, de repente, eles saltitavam ouvindo aquela música. E ela ignorava o brilho do sorriso dele quando ele ajudava alguém. E então, eles brigavam. E aquela era sempre a última vez, tudo ou nada. Sempre quase acabava, para refazer o quase início. A verdade é que sabiam que os laços que os uniam não podiam se romper, mesmo que esquecessem da sua existência. Mas o coração sempre reconhece o que o fez mais livre, porque o amor de verdade liberta, não prende.
Anos se passaram, até que um domingo ela olhou para o lado de sua cama e, novamente, não viu ninguém. Mas dessa vez não ficaria deitada, não havia sono. Somente um grande vazio preenchia seu corpo e seu espaço. Levantou logo e saiu com os pés descalços no chão frio de seu apartamento, olhou e não encontrou ninguém a sua espera. Não havia café nem torradas, só um chá gelado na geladeira. Foi o que bebeu naquela manhã, sentada no sofá enquanto Renato Russo cantava, na velha vitrola, que " é tão estranho, os bons morrem jovens...". Então ela ficou ali, sentindo o coração apertar cada vez mais, a garganta contraindo... Não tinha pra onde ir, nem o que fazer, estava imóvel, olhos fixos no nada.
Depois de terríveis duas horas, a mulher se levantou e foi até o quarto. Abriu o guarda-roupa, olhou, olhou... não tinha nada dele. Correu até o banheiro, só havia uma escova de dentes. Ela se olhou no espelho e não viu nada, chorou, puxou seus cabelos, quebrou alguns enfeites. Tentava se lembrar de como aquilo teria ocorrido, ela se sentia presa em um poço escuro e não sabia como escalar de volta a superfície. Agora o seu amor escorria pelo seu corpo, como suas lágrimas. Olhou para o lado, lançou a mão sobre um canivete, aproximou-o de seu pescoço...
Silêncio, tudo está escuro, ela está mergulhando pelas águas, ainda de olhos fechados, inconsciente.
- Oi, meu bem, meu bem! Acho que você dormiu demais hoje, a missa é daqui a 20 minutos. Você não vem?
Ela abriu os olhos vagarosamente, ficou olhando, não conseguia dizer nada. Olhou em volta, tocou seu companheiro.
- É... tá tudo ok?
Ela apenas balançou a cabeça positivamente e sorriu. Depois o puxou para a cama. Não queria fazer nada, queria ficar ali, coladinha ao homem que amava até que aquele domingo passasse logo, e depois, faria do resto da semana os seus domingos. E a cada vez que os laços se tornassem mais fortes, mais livres ele se sentiriam. Estava serena quanto a sua escolha, sabia que depois de algum tempo eles brigariam (como sempre ocorria), mas não queria esperar mais 6 dias para perceber que o amava. Agora ela o veria brilhar em cada gesto, quando cansasse, pintaria seu rosto de várias outras cores. Porque seus olhos podiam colorir o mundo. E, quando ocorresse, que fossem as brigas as provas de que o amor prevalece e não a morte.
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